Antônia Natália de Sousa Arrais

 A PRESENÇA DO CINEMA E A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE NA CIDADE DE PICOS-PIAUI

Antônia Natália de Sousa Arrais

 

Introdução

As ciências humanas e sociais estão cada vez mais preocupadas em pesquisar, compreender e explicar sobre a forma como a sociedade se compreende e como ela vem lidando com todas as transformações que vem acontecendo década após década. As práticas sociais estão em constantes transformações e qualquer que seja o avanço que ocorre na urbe é sentida e reconfigurada a um novo comportamento da população, deste modo, tais ações nas cidades podem ser objeto de muitos discursos.

Diante do exposto, trazendo a discussão pra um ponto antigo da história, podemos utilizar como exemplo um espaço de sociabilidade da Grécia Antiga, a Ágora, esta que significa “espaço de reuniões”, foi uma praça central onde dominava os poderes administrativos da época e onde os cidadãos exerciam seus direitos e participavam das decisões públicas. Para além disso, podemos pensar naquele espaço enquanto um local de sociabilidade da população da Pólis, era lá que as pessoas tinham uma interação social, a Ágora refletia, portanto, uma esfera pública onde era exercida tanto a cidadania como a democracia.

Com os novos espaços de sociabilidade nas urbes é perceptível que ocorrem mudanças no comportamento dos citadinos, os espaços não são neutros e não são criados para serem neutros, eles vão interferir seja de forma positiva ou negativa na vida das pessoas. No presente texto fazemos referência a um espaço de sociabilidade privado, dessa forma, ele acaba sendo um local de privilégio social, onde nem todas as pessoas da cidade tinham acesso, mais adiante discutiremos sobre quem frequentava aquele espaço e a forma em que ao mesmo tempo que existiam indivíduos que sentiam uma magnitude e imponência ao frequentar aquele ambiente, existiam também pessoas que sentiam uma carência pela falta de acesso.

A palavra “sociabilidade” aqui compreendida é remetida ao encontro de citadinos em lugares de acesso, seja ele privado ou público, onde há uma interação social destes na vida cotidiana. São trocas simbólicas entre amigos, familiares, casais, colegas de trabalho e diversas outras relações interpessoais. No entanto, a partir da modernidade sabemos que ocorrem mudanças significativas nesses espaços de sociabilidade e diante de tais transformações as relações interpessoais são sentidas através de divisões estabelecidas por uma segregação espacial, onde vamos passando a ter lugares produzidos de forma bastante desigual, nesse sentido, acaba sendo necessário uma análise acerca desses sentimentos de não compartilhamento do mesmo espaço que o outro, sendo considerado questões voltadas aos padrões de alto consumo.

O autor Michel de Certeau, em sua obra a invenção do cotidiano: artes de fazer, faz um estudo buscando extrair características da vida cotidiana sobre essas práticas tais modos de ação, como se fossem operações realizadas pelo indivíduo no processo de interação social. Certeau acreditava em uma cultura plural ordinária (comum) do cotidiano como uma apropriação ou reapropriação, sendo a relação social que determina o indivíduo e não o inverso, para Certeau o cotidiano consiste na prática e esse homem comum é quem inventa o seu espaço de várias formas possíveis é o que ele chama de artes de fazer.

Cada sujeito histórico, que vive em uma cidade passa por uma experiência única. Cada indivíduo tem uma perspectiva sobre cotidiano e sobre os espaços socioculturais que conhecem e experimentam a seu modo, do mesmo modo que para que uma prática social tenha significado é preciso que o cidadão imponha um, como bem pontua Certeau: “toda atividade humana pode ser cultura, mas ela não o é necessariamente ou não é forçosamente reconhecida como tal”, pois, “para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais...” (1994, p. 142). Dessa maneira, temos a cidade enquanto um território múltiplo, que está em constante mudança de articulações com as relações sociais, sendo desta forma, uma sociabilidade fluída que através das artes de fazer do indivíduo tem seu cenário todo moldado.

Assim sendo, o que se pretende no presente artigo é a construção de uma discussão sobre o cinema picoense enquanto um espaço de sociabilização que compreende práticas socioespaciais e sua importância, analisando o contexto do período da década de 60 e 70, tão bem como as pessoas que frequentavam aquele espaço. Dessa forma, faz-se necessário uma análise do espaço público que fica próximo do cine spark, a sociabilidade urbana no que tange esses encontros e também outros fatores essenciais que nos darão suporte para compreender como se dava de fato as relações entre os indivíduos e o espaço de encontro.

Contexto histórico

Após a década de 1960 a cidade de Picos, localizada no Sudeste do Piauí, passou por considerável desenvolvimento populacional e urbanístico modernizador, motivado em grande parte pela implementação de projetos de desenvolvimento, ligados a implementação do PIN – Programa de Integração Nacional, que consistia na construção de grandes rodovias com vistas a interligar as os regiões mais extremas do país – o qual, segundo Elierson de Sousa e Francisco de Assis1, foi com as facilidades trazidas, a população picoense, por intermédio desse programa, que a cidade começou a se desenvolver. Nesse cenário, de expansão populacional e urbana norteado pelos ideais de progresso e modernidade dos anos 1960, que os citadinos de Picos vieram a conhecer, transformar e criar seus espaços e práticas de sociabilidade em consequência das trocas culturais ocorridas nesse período.

Em vistas ao desenvolvimento, advindo da implementação desse programa, ambientes que antigamente eram espaços de lazer na cidade, como o rio Guaribas, passaram a ser impróprios devido sua contaminação, o que resultou na necessidade de se criar novos e transformar antigos espaços de sociabilidade e lazer da cidade. Visto que, possuir formas de lazer, esporte e sociabilidades, em uma cidade, é algo fundamental para a construção de vínculos (sociais, políticos e culturais) que consolida a memória coletiva de cada comunidade e contribuem com uma boa qualidade de vida de seus indivíduos. Nesse sentido, é possível identificar, na cidade de Picos, dois espaços de papel importante, na manutenção desses espaços de memória: a Praça Félix Pacheco e o Cine Spark.

 

A praça Felix Pacheco: espaço de memória e trocas culturais.

O primeiro deles encontra-se localizado bem no centro da urbe, próximo a bares, sorveterias e a igreja da cidade; foi palco não só para momentos solenes como de laser também e marca as transformações sofridas pelos espaços públicos, no decorrer desse processo de modernização.


Figura 1: Praça Felix Pacheco. Fonte: Museu Ozildo Albano

Acima é possível observar uma foto panorâmica da praça e identificar, no campo inferior direito, algumas crianças na fonte; ao centro um abrigo, com térreo e um espaço para festas em cima; por fim, as árvores frondosas, cujas sombras abrigavam leitores, casais e grupos de amigos que por ali passavam em seus momentos de lazer e interação. Era nela onde os personagens ricos e pobres usufruíram da presença de amigos, compartilhavam e discutiam obras literárias, filmes e vivências que compõem a memória da cidade. Essa afirmação encontra respaldo ao observarmos práticas como em rodas de leituras e nas bancas de revistas que ali, recebia tradicionalmente, homens e mulheres simpatizantes do hábito da leitura.

No entanto, com a modernização das cidades e a expansão do cinema no mundo moderno, houve implementação de uma nova atração na cidade, que teve como ponto de referência a praça Félix Pacheco, passando a receber o Cine Spark como mais novo espaço de lazer, socialização e trocas culturais, palco e inspirador do surgimento e reprodução de inúmeras histórias de amor (tanto nas telas como em suas poltronas).

 

Cine Spark como forma de lazer para a juventude picoense

Através das transformações urbanas a cidade é agraciada com um cinema, este chamado de Cine Spark, que vem a ser um novo local de lazer da juventude picoense, nesse sentido, possibilitando novas experiências e práticas sociais. O Cine Spark foi inaugurado na cidade de Picos em 26 de agosto de 1964, e teve como sua primeira exibição o filme norte-americano: Viagem ao Planeta Proibido. O cinema ficava situado em frente à Praça Félix Pacheco, com uma localização bem estratégica, visto que na década de 60 os maiores espaços de sociabilidade era o encontro dos citadinos nas praças e além disso nas proximidades do cinema tinha bares, sorveterias e pontos comerciais. O espaço do cinema era adequado, bem ventilado, com uma vista da tela de forma panorâmica e com uma excelente sonoridade, tendo capacidade para até 700 pessoas, em muitas das exibições o Cine Spark ficava com todas as suas poltronas ocupadas


                                                     Figura 2: Cine Spark Museu Ozildo Albano.

  

                                                                  Figura 3: Anotações pessoais                                                                                                                                Fonte: caderneta do Albano Silva.


O Cine Spark fazia exibição de diversos filmes em vários horários diferentes, foi um verdadeiro marco da ação da modernidade na cidade, era um espaço de sociabilidade bastante conhecido e importante para a população picoense, o espaço era frequentado por crianças, adolescentes e adultos, era praticamente o único lugar de lazer da população. Para além dos filmes o espaço contava com apresentações culturais, onde cantores regionais e nacionais faziam seus shows para o entretenimento dos citadinos. Até nos dias atuais as saudosas vivências daquele período estão na memória das pessoas que o frequentavam entre 1960 e 1980.

Não obstante, o espaço do Cine Spark era também destinado para transmissão de notícias tanto nacionais como internacionais, entre um filme e outro era corriqueiro a passagem de algum noticiário, nesse sentido, podemos notar que para além de entreter a população o cinema tinha como objetivo também o de ser informativo, proporcionando conhecimento aos indivíduos sobre o que acontecia no Brasil e no mundo, trazendo desde assuntos voltados para a política até assuntos voltados ao esporte.

Esses espaços eram procurados pelos citadinos em momento de tempo livre, as pessoas depois de uma longa semana trabalhando iam em busca de lazer, viam naquele espaço de sociabilidade um momento de descanso e sossego. Entorno da Praça Félix Pacheco existia várias opções para a diversão da população, para além do Cine Spark, havia casas comerciais, o Picos Hotel, a sorveteria Apolo Onze e o bar do pipoca, estes espaços sendo apelidados carinhosamente por seus “fregueses fiéis” como “abrigo”, estes espaços eram frequentados pela boêmia da época.

Nesses espaços supracitados tinha “um lugarzinho” para todos os gostos: os casais de namorados utilizavam o “escurinho do cinema” para seus encontros e namoricos; amigos se encontravam para assistir filmes, tomar uma cervejinha no abrigo e trocar conversas fiadas; as famílias se reuniam, levando seus filhos para passear na pracinha, olhar a fonte, tomar sorvete e assistir um filme. Um outro ponto de distração que é bastante curioso é que os jovens desse período gostavam bastante de ler, então a juventude intelectual do período se reunia debaixo de árvores e trocavam experiências de acordo com suas leituras, conversavam sobre os clássicos que já haviam lidos, sobre os filmes que estavam em cartaz e qual os que já haviam assistido no Cine Spark, aqui vale ressaltar que estamos nos referindo aos jovens mais elitizados da época, uma vez que o acesso aos livros e as sessões de cinema era algo de privilégio.

Cine Spark: papel do cinema na difusão da cultura moderna em picos

Sobre a função social do cinema nesse contexto é possível afirmar, segundo aponta Aylla Maria, que o mesmo compôs, junto à música, ao rádio e a imprensa, as ferramentas de massificação da cultural, de sociabilidade e esportivo, durante esse contexto histórico. Tais argumentos encontram eco nas transformações que os filmes, produzidos nesse espaço, motivaram nas mentalidades de seus espectadores ao estabelecer contato entre eles e valores que se popularizaram no mundo moderno como da igualdade de direitos entre homens e mulheres; é possível observar também que sua influência pode ser percebida na transformação das formas de se vestir, através dos estilos de roupas utilizados pelos atores dos filmes, inspirando a moda de homens e mulheres picoenses.

Esses aspectos nos direcionam a perceber como a expansão do cinema, sob a chegada do Cine Spark a Picos, serviu para colaborar com a inclusão da comunidade picoense no mundo moderno que até então pouco conheciam, por não estarem familiarizados com seus símbolos e elementos constitutivos. Entretanto, como na vida nem tudo são flores, essa popularização do cinema também despertou sentimentos de descontentamento entre membros de grupos conservadores, sobretudo ligados a igreja e segmentos militares da população, os quais atribuíam a essa nova forma de lazer o mérito de difundir ideias nocivas à sociedade. Sobre isso, Aylla Luz (2012) argumenta que:

“Estes pensamentos e percepções variados e divergentes acerca das novidades surgidas desde o início do século XX – inclusive o cinema como meio de lazer – nos fazem perceber que o fascínio e o “repúdio” andavam lado a lado, inclusive porque o processo de formação do ideário modernizador foi marcado tanto pela imposição quanto pela sedução, uma vez que havia aqueles que, por estarem diretamente ligados ao pensamento católico ou exclusos e submetidos ao autoritarismo, questionavam e negavam as inovações advindas com a modernidade e toda a dinamicidade que ela engloba”. (LUZ, 2012, p.12)

Dessa forma a autora expressa que, essa repulsa por parte de alguns segmentos da sociedade, em muitas cidades como a capital do Piauí e possivelmente também em Picos, contribuiu para uma não homogeneidade nas transformações oriundas da massificação de ideias e da cultura moderna trazidas pelo cinema. Não obstante, outro fator que possivelmente corroborou para essa disseminação parcial pode ser percebido na segregação dos espaços de lazer e sociabilidade como o cinema. Tal medida restringe às classes abastadas da população e restringia das demais o direito de acesso à cultura e outros elementos da modernidade que até então se popularizaram durante o início do Século XIX.

Quem eram os sujeitos que tinham acesso a esses espaços?

Devido à natureza econômica e hierárquica, na qual a sociedade tem se organizado, é possível notar que, em um primeiro momento, o mesmo não foi pensado para atender a necessidade de opções de lazer para todos os públicos. Como aponta CAMINHA (2012), o cinema foi inaugurado com vistas a receber membros de classes mais abastadas da população e caracterizava inicialmente um elemento de distinção social pois nem todos possuíam poder econômico necessário para transitar por determinados espaços como o cinema. Este aspecto, embora tenha sofrido algumas transformações no decorrer do tempo, passando a receber sujeitos mais humildes em suas seções, reflete uma notada elitização dos espaços de sociabilidade que ainda hoje pode ser percebido, seja na escolha dos espaços onde são construídos tais edifícios ou nos custos necessários para usufruir dos mesmos.

No caso do nosso objeto, o cine spark, seu endereço estava situado próximo à praça Félix Pacheco, outro espaço de socialização e compartilhamento cultural. Essa praça, durante as décadas de 60 e 70 possuiu um papel de destaque na comunidade picoense, sobretudo por ser um local próximo a bares e estabelecimentos que recebiam a juventude da cidade. A mesma, durante esse período, foi palco para inúmeros encontros entre grupos de todas as classes que partilhavam do espaço em seus momentos de lazer – os quais, devido à expansão imobiliária e industrial sofrida pela cidade durante essas décadas, foram substituindo velhos espaços de sociabilidade por opções mais modernas. Nesse sentido a inauguração do Cinema na cidade trouxe, sobretudo para essa juventude, novas dinâmicas de organização e lazer, ao trocarem o rio Guaribas pelo cinema e a praça.

No entanto, por mais que estes espaços estivessem localizados em uma área mais central da cidade, à luz das considerações de CAMINHA (2012), é possível observar que o cinema consistia em uma opção não muito viável para pessoas mais pobres devido o preço dos ingressos. Em seu trabalho, a autora traz depoimentos de citadinos que cresceram naquele período e tiveram a possibilidade de usufruir desses espaços, nele argumenta que mesmo o cinema sendo um espaço onde todos poderiam ter acesso nem todos possuíam o poder aquisitivo necessário para aproveitar do mesmo.

Dessa forma, cabe aqui cabe realizarmos um paralelo entre o passado e o presente da comunidade picoense que, em relação aos seus espaços de sociabilidade como o cinema, ainda hoje encontra dificuldades em ter acesso a estes. Tal argumento pode ser observado na escolha dos locais onde foram inaugurados os cinemas da cidade de Picos entre 2018 e 2020. Estando localizados em áreas notadamente distantes dos centros urbanos e comunidades periféricas da cidade, esses espaços limitam a possibilidade de acesso das classes menos favorecidas aos ambientes de cultura e lazer do mundo contemporâneo na cidade de Picos.

Considerações finais

Dado o exposto é possível constatar, através das memórias que foram construídas sobre esses espaços de sociabilidade e troca cultural, a relevância do cine Spark nas transformações sofridas pela Urbe em seu processo de modernização; identificando, também, um como um dos símbolos de modernidade da cidade: o cinema influenciou as formas de socialização da comunidade, do modo de se vestir e ao de se portar. Da mesma forma, percebe-lo como parte indissociável da história e memória da cidade, visto o fato de que o mesmo foi palco para o crescimento de personagens importantes na cultura picoense além de inspirar pessoas de todas as idades com seus filmes. Muito embora, devido a exigência de uma tacha para frequentara-lo, o Cine Spark tenha também constituído, um indicador de status social da comunidade já que não era um luxo que todos podiam pagar.

Referências biográficas

ARRAIS, Antônia Natália de Sousa, estudante do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí, campus Senador Helvídio Nunes de Barros.  

Referências bibliográficas

 

CERTEAU, Michel. (1994), A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, Vozes.

LUZ, Aylla Mara Caminha. Cine Spark: Memória, Lazer e Sociabilidade em Picos (PI) nas décadas de 1960 e 1970. 2012. 89 f. Monografia. Universidade Federal do Piauí: Picos, 2012.

AUN, Ana Carolina Passos. Sensibilidade e sociabilidade nas salas de cinema da cidade de Goiás (1909-1937). Anais do XVIII Encontro Regional da ANPUHMG, Mariana, 2012. p. 1-10.

BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

2 comentários:

  1. Parabéns pela pesquisa!

    Gostaria de saber como esta experiência de sociabilidade poderia ser abordada nas aulas de História do Ensino Médio?

    Sarah Karolina Sucar Ferreira

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  2. Olá! Antônia! De forma geral os conteúdos e materiais disponíveis para o ensino de história local se apresentam deficitários ou muito ligados a uma história tradicional! Como poder podemos usar a Historia Social e as Sociabilidades no ensino de história local? Abcs!

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